A Terapia Ocupacional no tratamento da dependência química: “maior gratificação é fazer a diferença no cuidado e na vida da pessoa que estava em sofrimento”

11227506_207760166225466_1140539127007498962_n(1)A dependência química é um problema que atinge muitas pessoas, provocando desarranjos familiares e sociais. Para quem deseja tratar o vício e trilhar um outro caminho, é preciso incentivo, força de vontade e também um tratamento adequado. Os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPsAD) contém equipes multidisciplinares, cujos profissionais são capacitados para atender e cuidar de pacientes usuários de álcool, crack e outras drogas. A Terapia Ocupacional faz parte deste cenário e pode ajudar, e muito, a quem deseja retomar sua vida, abandonando a dependência química. Para falar um pouco sobre a atuação do terapeuta ocupacional nesse contexto conversamos com a Dra. Elizandra Gonçalves de LIma e Cirne Rodrigues, que é terapeuta ocupacional e conselheira do CREFITO 15.

Dra. Elizandra possui graduação em Terapia Ocupacional pela Escola Superior de Ensino Helena Antipoff (1993). Tem experiência na área de Terapia Ocupacional, com ênfase em Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Especialista em Atenção Primária à Saúde e pós-graduada em Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Desde 1998 trabalha na Secretaria Municipal de Ações Sociais de Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Espírito Santo.

Veja a entrevista completa:

1-O que são os CAPS AD e quais atendimentos são prestados ou o que eles oferecem?

R: Os Centros de Atenção Psicossocial surgiram de um intenso movimento social, inicialmente de trabalhadores de saúde mental, que buscavam a melhoria da assistência no Brasil e denunciavam a situação precária dos hospitais psiquiátricos, que ainda eram o único recurso destinado aos usuários portadores de transtornos mentais e se constitui como principal estratégia da consolidação da Reforma Psiquiátrica. Os CAPS foram criados oficialmente a partir da Portaria GM 224/92 e são atualmente regulamentados pela Portaria nº 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002 e integram a rede do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas-CAPS AD são serviços abertos, de base comunitária, constituídos por equipe multiprofissional atuando na lógica interdisciplinar, especializado para atendimento aos usuários de álcool, crack e outras drogas. Os CAPS realizam atendimento, individual, em grupo, oficinas terapêuticas, atendimento aos familiares, consultas médicas, assembléias, reunião de familiares, entre outros.

2- Quem pode procurar os serviços oferecidos no CAPS AD?

R: Podem procurar os CAPS AD pessoas de todas as faixas etárias que apresentem intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. Não há necessidade de ser encaminhado por algum serviço ou unidade específica.

3- Como é o trabalho do terapeuta ocupacional junto a pacientes que são usuários de álcool ou outras drogas?

R: O Terapeuta Ocupacional é um profissional que tem sua atuação voltada para o campo da atividade humana, contemplando ações essenciais relativas ao auto-cuidado, lazer, educação e trabalho. O TO faz sua anamnese, elenca as informações necessárias, fragilidades, potencialidades, e necessidades do usuário. Diante das informações elabora o Projeto Terapêutico junto com seu usuário e familiares. O trabalho do terapeuta ocupacional tem como objetivo possibilitar a expressão, promover reflexão sobre a história de vida e problemática do uso e abuso de álcool e outras drogas, buscando reinventar o cotidiano dos usuários através das atividades terapêuticas indicadas para cada caso..

4- Qual a maior dificuldade na realização deste trabalho da Terapia Ocupacional?

R: Entendo que a maior dificuldade do nosso trabalho é fazer com que usuários, familiares, profissionais de áreas afins, gestores entre outros, entendam que terapia ocupacional não é para passar o tempo e nem ocupá-lo. Nosso objetivo está voltado para reabilitação e neste caso reabilitação psicossocial. Sempre que o profissional prescreve uma atividade, ele levou em consideração todo seu processo de avaliação do caso, as singularidades e necessidades do usuário.

5- Como deve ser a formação do terapeuta ocupacional que atua com dependentes químicos?  

R: Deve ser um profissional com especialização em saúde mental e atenção psicossocial e ter sensibilização para esta clientela, pois é um trabalho que exige que o profissional tenha uma disponibilidade para uma escuta qualificada e acolhedora, valorizando o sofrimento do usuário, se despindo de preconceitos e estigmas.

6-É difícil não se envolver com o drama de cada paciente/família que se encontra nesta situação da dependência química?

R: É difícil porque lidamos com vidas, seres humanos, pessoas que não pediram para estarem naquela situação e que necessitam do nosso apoio profissional para reestabelecerem suas condições de vida e de convivência social e familiar. Entretanto, o profissional ao longo de sua formação e prática, vai adquirindo maturidade e conhecimento técnico, além de manejos clínicos para trabalhar e lidar com essas questões pois suas demandas emocionais não podem interferir no atendimento e tratamento do usuário.

Na minha experiência profissional acredito que todo profissional que trabalha com saúde mental, seja terapeuta ocupacional ou outra especialidade, deve também realizar sua terapia onde pode e deve trabalhar as questões subjetivas e do seu trabalho.

7- Sabemos que quando há dependência química, nem sempre o dependente tem forças para lutar contra o vício e acaba abandonando o tratamento. Nestes casos, o que pode ser feito? Como a terapia ocupacional pode ajudar no retorno desses pacientes?

R: Todo processo de tratamento está sujeito a abandono e resistência por parte do usuário. Especialmente na dependência química abandono e recaídas são mais comuns. Devemos entender que essas situações são inerentes ao processo de recuperação desse sujeito e o terapeuta ocupacional pode utilizar várias ferramentas que o auxiliem no resgate desse usuário. Ferramentas essas que vão desde acolhimento, escuta, vínculo, abordagens motivacionais a outros manejos clínicos que sejam necessários a condução do caso.

8- Como deve ser a participação da família do paciente durante este tratamento? Além de apoio, a família também precisa de tratamento?

R: A participação da família em todo o processo é de suma importância, uma vez que esta necessita ser acolhida e fortalecida em suas demandas. A família precisa aprender a lidar com o dependente químico, tarefa que nem sempre é simples. Entender a doença, suas consequências, saber lidar com perdas, recaídas, isso é um processo.

Normalmente os familiares já vêm com uma história de desgaste, sofrimento e falta de apoio, não sabem o que fazer diante do problema.

Costumamos dizer que a família é co-dependente nesse processo, pois ela passa a viver em função do seu ente adoecido. Cabe ao profissional de saúde e também ao terapeuta ocupacional estabelecer uma relação respeitosa, fundamentada na atenção, escuta mútua, troca de saberes e experiências.

Na saúde mental buscamos o cuidado integral fortalecendo o protagonismo dos usuários e familiares.

Entendemos que a família necessita de acompanhamento desde o início do processo de tratamento.

9- Em São Paulo estamos vendo um grande debate sobre a forma de lidar com os usuários de crack. As reportagens mostram pessoas em estado deplorável, sem aparente consciência. Qual o melhor caminho para isso? O tratamento compulsório? Esperar a iniciativa do usuário? Qual a leitura que a senhora faz desta situação? 

R: Como está muito bem descrito no Guia Estratégico para o Cuidado de Pessoas com Necessidades Relacionadas ao Consumo de Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, o tratamento deve ser construído a partir de uma linha de cuidado com usuários e familiares, partindo do pressuposto da complexidade da realidade, o que torna impossível termos uma saída única, padronizada e isolada. Cada caso é um e deve ser estudado, avaliado dentro da singularidade do sujeito envolvido. O cuidado deve ser ofertado em regime aberto, de base comunitária, preferencialmente próxima aos seus familiares e dentro do seu território.

A internação deve ser o último recurso a ser utilizado, como consta da Lei Federal Nº10. 216 de 06 de abril de 2001, no “Art. 4o A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.”

E quando necessárias devem vir com laudo médico circunstanciado e que caracterize seus motivos, como está também descrito no artigo 6º da referida Lei.

A leitura que faço da situação atual de São Paulo e dos demais estados que passam por este mesmo problema é que devemos pensar na internação como último recurso a ser utilizado dentro de uma linha de cuidados para esta clientela. Devemos cobrar que as políticas públicas sejam efetivadas em prol do atendimento integral a esses usuários.

Ressalto que a judicialização na saúde invade nosso processo de trabalho, atropela nossos fluxos de atendimento, afeta a regulação de vagas. Se o recurso destinado às internações compulsórias fosse utilizado na implantação e efetivação da própria Rede de Atenção Psicossocial, que tem como foco a promoção e prevenção, sem dúvida, lograríamos maior êxito.

10- Quais as recomendações para o terapeuta ocupacional que pretende atuar junto a dependentes químicos?

R: O terapeuta ocupacional deve ser acolhedor, empático, criativo, saber trabalhar em equipe, estar despido de seus preconceitos e julgamentos do que considera estar certo ou errado, buscar sempre estar se atualizando dentro das políticas públicas, em especial de saúde mental com ênfase em álcool, crack e outras drogas.

11- Anteriormente perguntei sobre a maior dificuldade na realização deste trabalho. Agora pergunto: qual a maior gratificação? 

R: A maior gratificação é, sem dúvida, conseguirmos participar e colaborar do processo de resgate e inserção desse usuário no contexto de sua vida social, familiar e laborativa. É podermos dizer que fizemos a diferença no cuidado e na vida daquela pessoa que estava em sofrimento.

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